Durante uma viagem de moto, muitos motociclistas gostam de pilotar ouvindo música ou ainda, com o uso de intercomunicadores, vão conversando com outros companheiros de viagem ou com a garupa. Eu não. Acho que não existe terapia melhor do que pegar uma estrada em – relativo – silêncio escutando apenas seus pensamentos dentro do seu capacete. Pra mim funciona que é uma beleza. Durante a “terapia” surgem excelentes ideias, resolvo problemas, reflito sobre tudo e todos. Mesmo.

Há umas duas semanas fiz um pequeno passeio de moto, rodei cerca de 800 km aqui, desde a Grande São Paulo, até a região de Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Na viagem segui pelas Rodovias Ayrton Senna, Carvalho Pinto e Presidente Dutra (BR 116) e cruzei com umas 50 motocicletas (entre ida e volta). Mais uma vez constatei um fato que vem me incomodando muito e há muito tempo, uma “tradição” de longa data se perdeu quase que totalmente: motociclistas se cumprimentarem na estrada.

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Sou motociclista – ou motoqueiro – há mais de vinte anos. Já tive motos de vários “tamanhos”, mas, como quase todos os motociclistas “das antigas”, fui subindo a escada das cilindradas. Comecei com uma moto de pequena cilindrada e fui galgando cilindradas maiores, conforme a experiência – e busca por novas emoções – crescia. Nessa “escalada” fui aprendendo, não só como pilotar melhor, mas aprendendo que nossa tribo possui algumas tradições e comportamentos que devem ser preservados. Cumprimentar outros motociclistas na estrada ou quando paramos lado a lado num semáforo, é um deles.

Esse cumprimento é (ou era?) muito mais do que dizer um simples “olá”. Era (ou ainda é?) mostrar que você reconhece no outro motociclista um “irmão de armas”, outro guerreiro da mesma tribo, alguém que – assim como você – tem uma paixão tão grande que supera a necessidade de conforto, de segurança e, muitas vezes, de autopreservação. Alguém que tem valores parecidos e lida com as mesmas dificuldades, agruras, aventuras e sentimentos conflitantes que você. É mostrar que entre vocês existe uma solidariedade, uma cumplicidade que só é compartilhada por quem, de fato, entende os motivos e a motivação do outro. Mas acima de tudo, é demonstrar respeito.

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Não sei de quem é a culpa por essa e outras tradições motociclísticas estarem se perdendo. Podemos culpar a popularização das motocicletas como “meio de transporte” e a invasão do nosso mercado pelas motos de baixo custo ou ainda a facilidade de acesso ao crédito, que levam as ruas e estradas pessoas que, por outros motivos que não estritamente financeiros, não seriam motociclistas por opção. Podemos culpar a facilidade de acesso às motocicletas de grande cilindradas, que aumentou – e muito – o número de motociclistas “da moda”. Pessoas que já começam no mundo das motos pilotando motos potentes – sem “subir a escada”, sem experiência e sem entender as tradições. Pessoas que veem numa moto potente e exuberante um símbolo de status, masculinidade ou o que quer pessoas assim gostem de ostentar. Claro, não são todos assim, mas na hora de buscar culpados, generalizar facilita as coisas.

A verdade é que acho que a culpa acaba sendo nossa mesmo, motociclistas “das antigas”. Eu explico : durante essa minha viagem cansei de cumprimentar os outros motociclistas e não ser cumprimentado de volta. Depois de um certo tempo – e de um certo número de frustrações, eu confesso – parei de cumprimentar os outros motociclistas. Pensei: “que se dane, não sou palhaço”. Depois de alguns minutos a irritação tinha passado e eu fiquei triste comigo mesmo por ter pensado assim. Me senti traindo minhas raízes, deixando de cumprir minha obrigação.

Minha obrigação? É sim, minha não, nossa. Veja bem, quando chamei os motociclistas de “tribo”, foi porque acho que , de fato, essa definição é a que melhor se adéqua. E numa “tribo” quem são os responsáveis por manter vivas as tradições? Os “mais velhos” – e por vezes, mais sábios – integrantes dessa tribo. E quando falo “mais velhos” não me refiro à idade cronológica, me refiro à experiência, à vivência e ao conhecimento dos costumes, tradições e hábitos da tribo. Se nós começarmos a esquecer – ou “deixar pra lá” – essas mesmas tradições, quem passará o conhecimento aos “mais jovens”? Ensinar pelo exemplo, sempre foi e sempre vai ser a melhor maneira de ensinar. E de aprender. Portanto lembrem-se disso durante sua próxima viagem.

Nessa viagem passei por motos de vários estilos e cilindradas. Desde pequenas motos urbanas até maxi-trails carregadas, customs de marcas badaladas, speedbikes parecendo que estavam num autódromo, etc. Sabem quantos motociclistas me cumprimentaram? Dois. Um numa HONDA CG e outro numa BMW GS 1200. Isso me deu um certo alívio. Saber que não importa o tamanho (ou o valor) da motocicleta, o “espírito motociclístico” ainda esta por aí. Vivo. Talvez respirando com a ajuda de aparelhos e numa UTI, mas ainda assim, vivo.